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quinta-feira, 26 de abril de 2012

A prática de actos de DAE - Que responsabilidade ?

A 12 de Agosto de 2009, através do decreto-lei nº 188/2009, foram estabelecidas as regras a que se encontram sujeitas a prática de actos de desfibrilhação automática externa por agentes não médicos.
Além dos meios humanos o diploma regulamenta, também, o licenciamento para a instalação e utilização dos DAE[1], a monitorização e fiscalização da actividade, bem como o regime sancionatório no âmbito do DAE.
Foi, sem dúvida, uma iniciativa legislativa importante, inovadora, que veio regular e dar suporte legal à utilização de equipamentos DAE, que nessa data não sendo novidade no meio pré-hospitalar, operavam a coberto de meritórios, e corajosos, programas de desfibrilhação automática externa protocolados com associações de bombeiros, da iniciativa de médicos que assumiam a formação, supervisão e responsabilidade, como era o caso do Programa “Choque Para a Vida” do Hospital Fernando da Fonseca, iniciado em 2001 e pioneiro a nível nacional. O programa “Choque Para a Vida”, que incluía cerca de 19 equipamentos de desfibrilhação colocados em ambulâncias de diversas corporações de bombeiros, 13 dos quais de propriedade do próprio hospital, foi implementado pelo Hospital Fernando da Fonseca na sua área de influência com o objectivo de permitir uma desfibrilhação precoce de doentes vítimas de paragem cardio-respiratória.
Refere o preâmbulo do decreto-lei nº 188/2009, que “Ao contrário do que acontece noutros países, nos quais existe uma verdadeira cultura de emergência médica enraizada na sociedade, em Portugal ainda não estão reunidos os pressupostos para a adopção de um sistema que permita a utilização relativamente livre de desfibrilhadores automáticos externos pela população em geral.” Acontece, porém, que dado o défice de formação da população em geral, e especificamente a estudantil, em técnicas de suporte básico de vida, a dita cultura de emergência médica tardará a ser uma realidade.


Sustenta-se igualmente que os equipamentos, apesar de “muito seguros não estão imunes ao erro humano” (existirá no pré ou intra-hospitalar alguma actividade ou equipamento imune a erro humano!?), aumentando os riscos da sua má utilização na proporção do desconhecimento do utilizador. Por outro lado, não pode, nesta fase, ser descurada a consensualidade na comunidade médica de que “o acto de desfibrilhação, ainda que realizado através de desfibrilhadores automáticos, só pode ser realizado por não médicos por delegação de um médico e sob a sua supervisão”.
Deste modo, a prática de actos de desfibrilhação automática externa por não médicos só pode realizada por “operador treinado e certificado, actuando por delegação médica, com recurso a equipamento em adequadas condições de funcionamento e correctamente integrado na cadeia de sobrevivência”. Assim continuará até que estejam reunidas condições que permitam generalizar o seu manuseamento.
Estipula, então, o artigo 11º do diploma que “os operacionais de DAE só podem praticar actos de DAE por delegação[2] e sob supervisão de um responsável médico, no âmbito dos respectivos poderes de controlo”, considerando-se haver delegação de competências “quando o responsável médico e o operacional de desfibrilhação aceitam fazer parte do mesmo programa[3] de DAE”, regularmente licenciado.
Quer isto dizer que, o ODAE[4], devidamente certificado nos termos do decreto-lei nº 188/2009, só poderá praticar actos de DAE em programas de DAE onde esteja inserido, isto é, um bombeiro ODAE só poderá utilizar os DAE do programa do seu corpo de bombeiros, onde está incluído, uma vez que só nesse contexto recebeu a delegação de competência para a prática de desfibrilhação.
Não obstante o artigo 10º do diploma prever a possibilidade da entidade que certificou o ODAE proceder à revogação do seu certificado em caso de incumprimento, pelo seu titular, das normas definidas no decreto–lei,  entende-se que esta medida só possa ocorrer ao abrigo do regime sancionatório previsto nos artigos 25º a 28º.
Com efeito, estão previstas sanções para quem incorra na prática dos seguintes ilícitos contra-ordenacionais:
a)     Instalação e utilização sem licença de desfibrilhadores automáticos externos;
b)     Prática de actos de DAE por indivíduo que não seja operacional de DAE;
c)     Prática de actos de DAE por operacionais de DAE fora dos locais em que esteja habilitado a actuar enquanto tal;
d)     Incumprimento das normas de salvaguarda da cadeia de sobrevivência referida no artigo 3.º;
e)     Falta de envio dos documentos e registos referidos nos artigos 23.º e 24.º;
f)       Recusa de colaboração com acções de fiscalização ou prática de actos que ilegitimamente impeçam ou dificultem a sua realização.

Sem prejuízo de eventual responsabilidade criminal (as infracções acima descritas, por si só, não consubstanciam a prática de um crime, mas tão-somente de ilícitos de mera ordenação social) quem incorrer na prática de uma das infracções designadas, poderá ver ser-lhe aplicada uma sanção pecuniária de €500 a €3.740 (no caso de se tratar de pessoa singular) ou de €5.000 a €44.500 (caso se trate de pessoa colectiva), podendo ainda, em função da gravidade do ilícito e da culpa, ver também aplicada, além da coima, uma sanção acessória de revogação da licença ou de cassação do certificado de ODAE.
Entenda-se que a prática de um dos ilícitos elencados não é significativo de aplicação imediata de qualquer uma das sanções previstas. Em obediência ao princípio da legalidade, a sanção só poderá decorrer de processo de contra-ordenação instruído pelo INEM, I.P.[5]. Na sequência do levantamento do respectivo auto de notícia, que competirá ao INEM, I.P. ou às autoridades policiais no âmbito das suas competências, e instauração do necessário processo contra-ordenacional, o agente da prática do ilícito é notificado que foi constituído arguido, nos termos do Regime Geral das Contra-Ordenações[6].
Não sendo permitida a aplicação de uma coima ou de uma sanção acessória sem antes ter sido assegurado ao arguido o exercício do contraditório, é dada a possibilidade deste se pronunciar sobre o ilícito que lhe é imputado e sobre a sanção ou sanções em que incorre. À semelhança do que acontece na acusação (nota de culpa) nos processos disciplinares, o instrutor do processo terá de oferecer ao arguido todos os elementos necessários para que este fique a conhecer a totalidade dos aspectos relevantes para a decisão, nas matérias de facto e de direito. No decurso deste direito, constitucionalmente previsto, ao arguido é dado um prazo (razoável) de dias, corridos a contar da data de recepção da notificação, para, querendo, se pronunciar por escrito em sua defesa, podendo constituir mandatário, juntar documentos probatórios e arrolar testemunhas.
É precisamente no exercício desse direito de audição e defesa, que o arguido deve aduzir os argumentos que, no seu entender, tornarão inaplicável a sanção. Com efeito, só constitui contra-ordenação o facto que seja típico, ilícito e culposo, e para assim se concluir, teremos de verificar se existem causas que excluam a ilicitude e a culpa, já que a tipicidade é a prevista nas alíneas a) a f) do nº 1 do artigo 25º do decreto-lei nº 188/2009. É disso que trata o artigo 27º, de epígrafe “Exclusão da punibilidade”.
O artigo 27º consubstancia causas de justificação da ilicitude e de exclusão da culpabilidade, i.e, o agente não será punido, consagradas nos artigos 31º a 39º do Código Penal[7], ao estipular que “Não é punido o agente que pratique actos de DAE nas condições referidas nas alíneas b) e c) do n.º 1 do artigo 25.º, quando tal seja estritamente necessário para a salvaguarda da vida ou da integridade física da vítima, em virtude da indisponibilidade de operadores de DAE habilitados a actuar, ou da impossibilidade de actuação no local próprio, por parte de operadores de DAE habilitados, e desde que sejam respeitadas as leges artis.”[8]
Infere-se desta disposição que fica excluída a punibilidade pela:
1º     prática de actos de DAE por indivíduo que não seja operacional de DAE, quando tal seja estritamente necessário para a salvaguarda da vida ou da integridade física da vítima, em virtude da indisponibilidade de operadores de DAE habilitados a actuar;
2º     prática de actos de DAE por operacionais de DAE fora dos locais em que esteja habilitado a actuar enquanto tal, quando tal seja estritamente necessário para a salvaguarda da vida ou da integridade física da vítima, em virtude da impossibilidade de actuação no local próprio, por parte de operadores de DAE habilitados, e desde que sejam respeitadas as leges artis

Ora, no 2º caso de exclusão de punibilidade, se assim não fosse, afigurar-se-ia atentatório das competências técnicas de um ODAE, perante uma paragem cardio-respiratória, presenciada ou não, fora dos locais em que esteja habilitado a actuar (em programas de DAE onde esteja inserido), ter à sua disposição equipamento DAE, não estarem presentes os respectivos operacionais, e ver-se impedido de o utilizar, respeitando as leges artis. Relembre-se que o próprio manual de DAE refere que o factor tempo é primordial, as probabilidades de sucesso da desfibrilhação diminuem a cada minuto que passe sem que a desfibrilhação seja tentada.
No que concerne ao 1º cenário, temos, na prática, um “indivíduo” que não é ODAE mas que tem acesso ao equipamento. Não enveredando pela hipótese de se tratar de um cidadão comum (dado que esses, que nem treino de SBV têm, dificilmente irão utilizar um equipamento DAE), poderá conjecturar-se que esse indivíduo seja um bombeiro com formação em SBV mas sem formação em DAE. Para isso bastará que esse bombeiro faça parte de uma tripulação de ambulância equipada com DAE, mas onde não exista ODAE.
Não obstante se entender que, face a uma PCR presenciada, a utilização precoce do DAE poderá contribuir para a salvaguarda da vida humana, recuperando-a, por ventura, de um ritmo cardíaco mortal, sabe-se de antemão que aquele bombeiro não tendo formação de DAE não o deveria utilizar. Contudo, não se pode escamotear que, nestes casos, duas ordens de valor se confrontam, por um lado um dever jurídico, isto é, a necessidade imposta pelo direito a uma pessoa de observar determinado comportamento (in caso o não utilizar o DAE), e, por outro, um direito fundamental a proteger, o bem jurídico vida. Porém, o bem jurídico vida prevalecerá sobre qualquer outro, existindo, no caso em apreço, uma sensível superioridade do interesse a salvaguardar relativamente ao interesse sacrificado.
Com isto, não se quererá “dar carta branca” para que tudo e mais alguma coisa seja feito a coberto de eventuais causas de exclusão da ilicitude e da culpa, na verdade poderá pensar-se estarem reunidos os pressupostos dessa exclusão e a final decorrer imputação de responsabilidade criminal por crime contra a vida ou contra a integridade física. A título de exemplo, poderá incorrer num desses crimes (consoante o resultado) o bombeiro que pratica o acto de desfibrilhação, e, não conhecendo o algoritmo do SBV-DAE bem como as condições em que o DAE deve operar, cumprir a ordem de “choque recomendado”, sem ter entendido que a análise feita pelo DAE não poderia ser fidedigna pois não estariam garantidas condições para tal. Por outro lado, poderão surgir, igualmente, constrangimentos para a entidade licenciada para a instalação e utilização dos DAE, ao ver ser-lhe aplicada uma coima nos termos do artigo 25º ou a revogação da licença por ter preenchido um dos motivos elencados no artigo 17º.
Como verificado, não está excluída ou proibida a utilização do DAE por indivíduos sem habilitação ou por ODAE fora do seu programa, contudo, a decisão de operar com o DAE em contravenção à regra tem de ser fruto de conhecimento e certeza do que se está prestes a levar a cabo, e não de uma decisão leviana, pois, afinal, o resultado poderá não ser o esperado.
Refira-se, ainda, que a punibilidade da “tentativa” e da “negligência” está prevista no nº 2 do artigo 25º.
Existe tentativa quando o agente pratica actos de execução que decidiu cometer sem que esta chegue a consumar-se. Então, bastará que o agente opere o DAE, colocando-o em “on”, ligue cabos ou cole os eléctrodos de desfibrilhação no doente, apesar de não se consumar a prática do acto de desfibrilhação. Note-se que a “prática de actos de DAE” não se restringe ao choque, à “desfibrilhação” propriamente dita, mas tão-somente ao manuseamento do equipamento com o fim de o operar no doente.
Por último, refira-se que a instalação e utilização de DAE em ambiente pré-hospitalar é ainda uma inovação acessível apenas a alguns corpos de bombeiros, mas que, forçosamente, a médio prazo se irá generalizar, pois comprovadamente se traduz numa mais-valia no socorro em ambiente pré-hospitalar, bem como num desejado upgrade de competência técnica de todos os tripulantes de ambulância, independentemente de se tratar de Tripulantes de Ambulância de Socorro ou de Transporte.
Artigos com interesse:
  • Estudo sobre desfibrilhadores colocados em terminais de passageiros de 3 aeroportos de Chicago, que, juntos, servem mais de 100 milhões de passageiros por anoNos casos de sobreviventes, verificou-se que a maioria dos utilizadores não tinha o dever de agir nem nenhum treino prévio no uso de DAE.  http://nejm.org/doi/pdf/10.1056/NEJMoa020932



[1] Desfibrilhador Automático Externo
[2] Documento de delegação de competências em http://www.inem.pt/files/2/DAE/489895.pdf
[3] Programa Nacional de Desfibrilhação Automática Externa http://www.inem.pt/files/2/DAE/489927.pdf
[4] Operacional de Desfibrilhação Automática Externa ODAE. Para se ser operacional de DAE, tem de se completar com sucesso um curso de DAE (ministrado por uma entidade formadora licenciada pelo INEM, I.P. no âmbito do PNDAE) e possuir a “Delegação de Competência para a Prática da Desfibrilhação Automática Externa por Não Médicos” do Responsável Médico dum Programa de DAE igualmente licenciado pelo INEM,I.P.. Não é exigido que seja Tripulante de Ambulância de Socorro.
[5] Competirá ao INEM, I.P., além da elaboração de auto de notícia, a instrução e a decisão do processo de contra-ordenação, cfr artigo 28º do DL188/2009.
[6] Decreto-Lei nº 433/82, de 27 de Outubro
[7] O Código Penal é direito subsidiário do Regime Geral das Contra-ordenações
[8] Conforme à boa prática do SBV-DAE