Nota bene

1. "Todo o indivíduo tem direito à liberdade de opinião e de expressão, o que implica o direito de não ser inquietado pelas suas opiniões e o de procurar, receber e difundir, sem consideração de fronteiras, informações e ideias por qualquer meio de expressão.” (Art. 19º da Declaração Universal dos Direitos Humanos);

2. Todos os artigos publicados neste blogue são fruto do entendimento estritamente pessoal dos seus autores e não podem ser vinculados a qualquer instituição a que estes estejam associados;

3. Tendo em consideração que "Mudar de opinião e seguir quem te corrige é também o comportamento do homem livre" (Marco Aurélio, Imperador Romano), os autores reservam-se ao direito de rever e republicar os seus artigos;

4. Os leitores poderão interagir com os autores, utilizando o email referenciado no blogue;

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terça-feira, 7 de maio de 2013

A realização de testes de despistagem da alcoolemia nos Corpos de Bombeiros


1.     Introdução

“A Brigada de Trânsito de Vila Real deteve um bombeiro da corporação de Vinhais por conduzir uma ambulância, onde transportava uma paciente, com uma taxa de alcoolemia de 1,4 gramas por litro, disse hoje à Lusa fonte da corporação.” – 27.09.2007

 O bombeiro interceptado pela Brigada de Trânsito a conduzir uma ambulância com uma taxa de alcoolemia de 1,4 gramas por litro, perto de Vila Real, foi hoje condenado a uma multa de 600 euros e oito meses de inibição de conduzir.” – 25.10.2007

 “Um condutor dos Bombeiros de Moura, conduziu alcoolizado uma viatura. A GNR fez o teste de alcoolemia e o indivíduo acusou uma taxa de 1,63 gramas/ litro de álcool no sangue. Cem dias de multa, a 7 euros/ dia e seis meses sem carta foi a decisão do juiz.” – 7.11.2007

“Bombeiro conduzia ambulância com 1,34 gramas de álcool no sangue… Os militares optaram por não interromper a marcha, por esta "viajar com os sinais de marcha de urgência", explicou ao jornal fonte próxima da BT.” – 12.5.2008

“Um motorista do INEM, com 26 anos, conduzia alcoolizado quando, a 9 de Agosto de 2008, passou um sinal vermelho, a cerca de 70km/h, e atropelou um jovem de 21 anos.” – 28.5.2009

“No dia de São Martinho a PSP montou uma operação STOP junto ao Hospital Divino Espírito Santo. Tal situação fez com que a Polícia, no seu dever, fizesse cumprir a lei, nomeadamente, a tolerância zero, aos bombeiros, que muitas das vezes ficam imunes a estas fiscalizações. Após a realização dos teste de alcoolemia aos bombeiros foi detectado num elemento condutor de uma ambulância uma taxa variável entre os  0.5 e os 0.8 de alcoolemia.” – 19.11.2009

“Um bombeiro de Estremoz, na casa "dos 30 anos", foi expulso da corporação depois de averiguações internas, por ter sido "apanhado" pela GNR, alegadamente alcoolizado, a conduzir uma ambulância, disse hoje o comandante, Carlos Machado.” Contactada pela Lusa, fonte da GNR limitou-se a explicar que o indivíduo foi interceptado por elementos do destacamento de Trânsito e foi submetido a um teste de alcoolemia. O suspeito, acrescentou a fonte, acusou "1,61 gramas de álcool por litro de sangue", o que constitui "crime", pelo que foi detido e, posteriormente, libertado sob Termo de Identidade e Residência (TIR). - 23.5.2011

Eis algumas das notícias, preocupantes mas felizmente raras, que nos chegam trazidas pelos jornais, pela internet e telejornais, e que criam no subconsciente do comum cidadão uma imagem negativa, desacreditadora e desprestigiante da instituição Bombeiros. Ocasionalmente, também somos confrontados com comentários e relatos de situações depreciativas à nossa instituição, algumas vezes injustos e revestidos de grande ignorância que se traduzem na oportunidade de mentecaptos generalizarem e apelidarem todos os bombeiros de “cambada de bêbedos”.

Contudo, a verdade seja dita, se por um lado existe quem coloque as suas “mãos no lume” em como, casos como os noticiados, nunca poderiam ocorrer no seio do seu corpo de bombeiros dada a abstinência do consumo de álcool, outros farão como a avestruz. Porém, como no meio é que está a virtude, existirá, certamente, um número significativo de comandos e direções que, conscientes do problema e da necessidade de implementarem medidas de prevenção e controlo, se sentem “de mãos e pés atados” ao se depararem com uma barreira burocrática de direitos e garantias que parece favorecer os prevaricadores.

Sem pretensiosismos, mas tão-somente com o intuito de clarificar a possibilidade, ou não, de serem efetuados testes de despistagem de alcoolemia no seio dos corpos de bombeiros, à semelhança do que acontece em variadíssimas empresas de prestação de serviços, o presente artigo aborda a temática na expectativa de estar a contribuir com uma ferramenta de trabalho para aqueles que não metendo as mãos no lume nem fazendo como a avestruz têm presente que os problemas associados ao consumo de substancias psicoativas[1] não ocorrem somente nas empresas mas também entre as fileiras de homens e mulheres nos corpos de bombeiros.

Tal desígnio não se afigura fácil, dado que tem sido sempre abordado pela Autoridade para as Condições do Trabalho[2], pela Comissão Nacional de Proteção de Dados[3] e pela jurisprudência dos tribunais administrativos sempre numa perspetiva laboral, o que, logo de início, nos levanta constrangimentos legais na sua aplicabilidade ipsis verbis aos corpos de bombeiros voluntários dada a especificidade destes. Como se sabe, nos corpos de bombeiros encontramos bombeiros somente em regime de voluntariado e outros que além de serem voluntários têm também um contrato individual de trabalho com a respetiva associação humanitária de bombeiros (AHB) para desempenharem funções de bombeiro. Ora, se no que concerne aos segundos, dúvidas não subsistem que em matéria de segurança, higiene e saúde no trabalho se lhes aplicarão as disposições do Código do Trabalho[4] e do Regime Jurídico da Segurança e Saúde no Trabalho[5], quanto aos primeiros, como adiante verificaremos, a realização de testes de despistagem de alcoolemia não se afigura óbvia e livre de controvérsia.

2.     A necessidade de prevenção e de dissuasão

Mais importante que o combate é a prevenção. Também aqui a máxima tem aplicabilidade. Os corpos de bombeiros são escolas filantrópicas, onde se cultivam os nobres valores do altruísmo, da abnegação e da coragem, que as sociedades almejam, contudo, devem também ser instituições com preocupações na prevenção e dissuasão do consumo das substâncias psicoativas que, porventura, poderão ocorrer no seio do corpo de bombeiros, tal como acontece na sociedade em geral. Esta é uma preocupação que requer a intervenção das direções das associações, dos comandos, das chefias e dos próprios bombeiros, pelo que se considera imperioso despertar consciências e se encetarem esforços para que sejam implementadas políticas de prevenção de dependências, atuando proativamente, ao nível da prevenção e da deteção destes casos no seio dos corpos de bombeiros.

3.     A Constituição e as Leis Laboral e de Proteção de Dados

Tudo orbitará em redor da Lei Suprema. Este é o cerne da questão, a realização de testes de despistagem de alcoolemia afetam direitos, liberdades e garantias tutelados pela Constituição da República Portuguesa, além de carecerem do devido enquadramento na lei laboral e de proteção de dados.

No âmbito laboral, a justificação da sua prática é encontrada na necessidade de proteção da segurança do trabalhador e de terceiros[6] e fundamenta-se no âmbito da organização da segurança, higiene e saúde no trabalho[7].

Desta forma, a realização de exames ou testes de despistagem de alcoolemia nos corpos de bombeiros, está intimamente relacionada com a necessidade da sua implementação a fim de se verem acautelados os interesses da própria associação, e da necessidade de garantir um princípio de proporcionalidade e não discriminação.

Assim, em resultado da ponderação destes interesses, nada obsta a que a realização de testes de despistagem aos bombeiros com contrato de trabalho com a associação venha a ser uma realidade nos Corpos de Bombeiros, por via de regulamentação interna[8], desde que não sejam atentatórios dos princípios enunciados e após ter sido possibilitada a participação dos trabalhadores ou seus representantes nas medidas a preconizar. Estas medidas, devem decorrer de uma obrigação de prevenção que impende sobre o empregador[9] e/ou comando[10] do Corpo de Bombeiros, bem como da necessidade de proteção da saúde física e psíquica do próprio ou de terceiros utentes do serviço de bombeiros. Neste sentido, deverá entender-se que respeitam o princípio da proporcionalidade os exames:

  • Contextualizados no âmbito do planeamento e programação da segurança e saúde no trabalho[11], da respectiva organização de meios e serviços de segurança e saúde no trabalho[12];
  • Sejam “necessários, adequados e proporcionais à verificação de alterações e para a determinação da aptidão ou inaptidão física e psíquica para o exercício das suas funções e para a defesa da sua própria saúde”[13];
  • Na organização do programa de controlo do consumo de álcool ou de substâncias psicoativas no local de trabalho, as exigências particulares de determinadas funções[14] e o grau de consciencialização dos atores envolvidos;
  • Tenha sido assegurado o quadro de informação, consulta e participação dos trabalhadores e seus representantes sobre os aspectos referenciados[15].
  • No que concerne ao respeito pelo princípio da não discriminação, atente-se que os testes não podem revelar-se abusivos, discriminatórios ou arbitrários, pelo que, são indicadores da não existência destas circunstâncias:
  • A realização dos exames sob solicitação e/ou responsabilidade do médico do trabalho[16];
  • A compreensibilidade do critério de escolha do universo de trabalhadores ou do trabalhador sobre a necessidade de submissão a teste;
  • A garantia que os resultados recolhidos não são utilizados para fins alheios à finalidade originária, isto é, a proteção da saúde física e psíquica do próprio ou de terceiros. Contudo, isto não significa que não seja possível o uso dos resultados obtidos para instrução de processo disciplinar;[17]


Outra questão de grande importância prende-se com a proteção de dados pessoais. A recolha e tratamento de dados na realização de exames ou testes de despistagem da alcoolemia ou de substâncias psicoativas, ainda que de forma não automatizada, enquadram-se na definição da lei sobre a proteção de dados pessoais e de dados sensíveis[18] [19]. Nesse contexto importa que:
  • Este tratamento seja previamente autorizado pela CNPD – Comissão Nacional de Proteção de Dados[20];
  • Seja garantida a segurança e confidencialidade do seu tratamento e que este se processe "de forma transparente e no estrito respeito pela reserva da vida privada, bem como pelos direitos, liberdades e garantias fundamentais";
  • Os “responsáveis do tratamento de dados pessoais, bem como as pessoas que, no exercício das suas funções, tenham conhecimento de dados pessoais tratados, ficam obrigados a sigilo profissional, mesmo após o termo das suas funções".

4.     Os analisadores

Em Portugal, os testes de despistagem da alcoolemia[21] iniciaram-se nos anos 80 pela mão das entidades fiscalizadoras do Código da Estrada, mas somente em 1991 seria regulamentado o uso desses alcoolímetros.

A determinação do teor de álcool no sangue através do ar expirado, baseia-se na existência de uma relação bem definida entre o teor de álcool no sangue que passa para os pulmões e o ar presente nos alvéolos. Na fase final da inspiração, estabelece-se nos pulmões, um equilíbrio entre as fases líquida e gasosa do etanol em que a concentração de álcool na fase gasosa depende da concentração da fase líquida, tendo em consideração que a temperatura interna é aproximadamente constante. Este equilíbrio é favorecido pelo facto dos alvéolos não se esvaziarem completamente mesmo em expiração forçada. Assim, durante uma inspiração, a porção inicial de ar provém do ar residual das vias respiratórias, e só depois é admitido ar exterior. De acordo com os mesmos critérios, a primeira porção de ar expirado provem do ar residual, o qual contém menos álcool que o ar alveolar. O ar expirado contém também uma pequena porção de etanol que provém da sua difusão através do sangue, pela saliva e pelas mucosidades que revestem a boca e traqueia.[22]

Para análise do Teor de Álcool ingerido através do ar Expirado (TAE) existem basicamente duas tipologias de alcoolímetros:

a) Alcoolímetro de despiste, ou qualitativo,

b) Alcoolímetro evidencial, ou quantitativo.

Os alcoolímetros evidenciais, ou quantitativos, são, analisadores de medição da concentração da massa de álcool por unidade de volume na análise do ar alveolar expirado, utilizados pelas entidades fiscalizadoras do Código da Estrada (PSP, GNR) e têm acoplado uma impressora que emite talão com a taxa de álcool presente, número sequencial de registo, identificação do aparelho, data e hora da realização do teste, e estão devidamente regulamentados[23].

Os primeiros, de despiste ou qualitativos, também utilizados numa primeira instância pelas referidas entidades fiscalizadoras do Código da Estrada[24], são os comummente utilizados em alguns corpos de bombeiros. Realizam a determinação da TAE, não são submetidos a controlo metrológico, sendo no entanto aconselhável a sua calibração periódica.
Um alcoolímetro de modelo aprovado e com verificação válida, utilizado nas normais condições de funcionamento, fornece indicações válidas e fiáveis para todos os efeitos legais. O valor indicado pelo alcoolímetro em cada utilização é o mais correto, a não ser que este, como meio de prova (exame), seja posto em causa por outro meio de prova que abale esta sua credibilidade (a contra-prova).
 

5.     Regulamentos de controlo de alcoolemia nos Corpos de Bombeiros

É conhecida a existência de regulamentos internos de corpos de bombeiros que contemplam a possibilidade de serem realizados testes de despistagem da alcoolemia, encontrando-se também, disponíveis na internet, regulamentos de controlo de alcoolemia em uso em alguns corpos de bombeiros.

Antes de nos debruçarmos sobre a possibilidade legal, ou não, dos testes incidirem sobre os bombeiros voluntários, dir-se-á que às associações não bastará tão-somente adquirirem um instrumento de medição (alcoolímetro) e começarem a fiscalizar o corpo de bombeiros. Existem, além dos condicionalismos legais já descritos, variados factores que terão de ser atendidos de modo a minimizar a contestação sobre os procedimentos e a salvaguardar o respeito pela condição humana dos elementos a fiscalizar.

Desde logo, é imperiosa a existência de um conjunto de regras que regulem a realização de exames ou testes de despistagem do Teor de Álcool ingerido através do ar Expirado (TAE), isto é, terá de existir um regulamento para este efeito, regulamento esse que se fundará no poder regulamentar da entidade patronal[25] (direção), no que respeita aos bombeiros com vínculo contratual, e do Comandante do Corpo de Bombeiros em relação aos bombeiros voluntários.

Como referido, perspectivando-se a aplicação do regulamento a bombeiros com contrato individual de trabalho celebrado com a associação, a sua legalidade ficará condicionada a autorização prévia da CNPD e ao seu envio para o serviço desconcentrado da Autoridade para as Condições de Trabalho (ACT) que detenha competências territoriais sobre a organização apresentante[26]. Com estes envios, as AHB “requerentes” serão esclarecidas sobre eventuais desconformidades detetadas no regulamento e da sua necessária correção, sem prejuízo de posteriores ações inspetivas da ACT.

Depois, aferida a sua conformidade pela ACT, e a aprovação pela CNPD, deverá o regulamento ser publicitado na sede da AHB (e nas secções destacadas, se for o caso).

Em síntese, no que concerne à elaboração, propriamente dita, do regulamento para a realização de exames ou testes de despistagem a bombeiros com contrato individual de trabalho com a associação, compatibilizando-se este com as exigências legais aplicadas no campo laboral, as suas disposições devem ter em consideração os seguintes aspetos:

  1. A realização de exames ou testes de despistagem do Teor de Álcool ingerido através do ar Expirado (TAE) aos bombeiros trabalhadores encontra a sua justificação na proteção da segurança do trabalhador e de terceiros e situa-se no âmbito da organização da segurança e saúde no trabalho da própria AHB;
  2. A sua realização pressupõe que tenha sido previamente assegurado o quadro de informação, consulta e participação dos bombeiros trabalhadores;
  3. Devem ser oferecidas garantias de que a realização da despistagem não é executada de forma discriminatória ou arbitrária;
  4. A realização dos exames apenas pode ocorrer sob solicitação e/ou responsabilidade do médico do trabalho (art. 108º/1/2, 107º e 103º do RJSST);
  5. A recolha e tratamento de dados na realização de exames ou testes de despistagem da alcoolemia, ainda que de forma não automatizada, tenha sido previamente autorizada pela CNPD;
  6. Não é legalmente possível[27] estabelecer uma presunção inilidível, fazendo equivaler a recusa do bombeiro trabalhador a teste positivo de presença do álcool no organismo;
  7. Da eventualidade de, em resultado da detecção de situações de presença de álcool no organismo, poderem resultar consequências disciplinares, ao bombeiro trabalhador serem assegurados os direitos de defesa adequados, designadamente a possibilidade de contraprova fiável;
  8. Não poderem resultar encargos de qualquer tipo para o bombeiro trabalhador em resultado da execução de medidas de controlo do consumo do álcool;

6.     A especificidade dos bombeiros voluntários

Tendo-se em consideração o estipulado na alínea i) do nº 1 do artigo 5º do Decreto-lei nº 241/2007, de 21 de Junho, alterado e republicado pelo Decreto-lei nº 249/2012, de 21 de novembro, é um direito dos bombeiros voluntários dos quadros de comando e ativo terem “acesso a um sistema de segurança, higiene e saúde no trabalho organizado nos termos da legislação vigente, com as necessárias adaptações”. Seremos tentados a afirmar que esses serviços de segurança, higiene e saúde no trabalho, a existir, presumidamente não funcionarão 24 sobre 24 horas, tal como a atividade do Corpo de Bombeiros, o que comprometerá a realização de teste de despistagem a qualquer hora do dia ou da noite. Corresponderia dizer que, somente durante o dia e mediante agendamento da ação de fiscalização, é que seria exequível a realização do teste de despistagem, afastando-se por completo a realização deste sempre que os superiores hierárquicos constatassem existirem indícios ou manifesta suspeita de que o bombeiro se encontra a prestar serviço sob influência do álcool, suscetível de ameaçar ou comprometer a boa prestação do socorro e a segurança de todos os intervenientes.


a)      Quem realiza o teste

Até aqui, poderia ser defensável que a realização dos testes de despistagem da TAE, através de alcoolímetro de despiste, ou qualitativo, pudessem ser efetuados pelo comando do Corpo de Bombeiros, sob sigilo profissional, com garantias de segurança e confidencialidade do tratamento dos dados e que o teste se processasse "de forma transparente e no estrito respeito pela reserva da vida privada, bem como pelos direitos, liberdades e garantias fundamentais" dos bombeiros. Porém, assim não será.

Segundo a ACT, se os testes de alcoolemia forem realizados através de aparelhos de expiração de ar, não têm de ser obrigatoriamente feitos por um médico. Contudo, devem-no ser sempre por pessoal especializado dos serviços de saúde, higiene e segurança no trabalho (SHST) da empresa ou organismo público. Ora, face a este condicionalismo legal, afigura-se imperiosa a existência de um serviço de saúde, higiene e segurança no trabalho nas Associações Humanitárias de Bombeiros, serviço, esse, próprio ou contratado, bem como de técnicos para realizarem os testes.
 

b)     O Regulamento Interno do Corpo de Bombeiros

A existência de um regulamento para a realização de exames ou testes de despistagem da alcoolemia a bombeiros deverá ser prevista no regulamento interno do Corpo de Bombeiros, mais concretamente, no descritivo dedicado às normas de funcionamento interno do corpo de bombeiros. A sua referência no regulamento interno não deverá acarretar qualquer censura, desde que esteja em conformidade com a lei (à semelhança de outras disposições no regulamento interno) e, por conseguinte, possam ser praticados os atos lá descritos. Por outro lado, a sua referência no regulamento interno traduz o entendimento do comando sobre a problemática e, igualmente, um modo de publicitar e dar visibilidade à organização e disciplina que se pretende no Corpo de Bombeiros.
Atente-se que a elaboração do regulamento interno do Corpo de Bombeiros emana do poder regulamentar do Comandante do Corpo de Bombeiros, observando o estipulado no Despacho nº 20915/2008, de 11 de Agosto[28], por força do art.º 25º do Decreto-lei nº 247/2007, de 21 de Junho, alterado e republicado pelo Decreto-lei nº 248/2012, de 21 de novembro.
Neste sentido, estará no livre arbítrio do Comandante do Corpo de Bombeiros fazer constar, ou não, no regulamento interno a realização de exames ou testes de despistagem da alcoolemia aos bombeiros, desde que tal seja legalmente permitido. Ademais, o próprio despacho de aprovação da Direção Nacional de Bombeiros faz ressalva das disposições aditadas ao modelo pela AHB no uso das suas competências de regulamentação. Questão diferente, e a jusante desta questão de “constar ou não constar” no regulamento interno, será a necessária conformidade legal do regulamento para a realização de exames ou testes de despistagem da alcoolemia.

c)      O Regulamento Disciplinar dos Bombeiros Voluntários

A realização de exames ou testes de despistagem de alcoolemia não está expressamente prevista no Capítulo V do Decreto-lei nº 241/2007, de 21 de Junho, alterado e republicado pelo Decreto-lei nº 249/2012, de 21 de novembro, dedicado ao Regime Disciplinar, nem tampouco na Portaria nº 703/2008, de 30 de Julho, que consagra o Regulamento Disciplinar dos Bombeiros Voluntários (RDBV).

Dispõe o nº 1 do artigo 3º do RDBV, que “considera-se infração disciplinar o facto, ainda que meramente culposo, praticado pelo bombeiro voluntário com violação dos deveres gerais ou especiais decorrentes da função que exerce”, e o nº 3 que “constitui ainda infração a violação dos deveres gerais previstos nos nºs 3 a 11 do artigo 3º do Estatuto Disciplinar dos Trabalhadores Que Exercem Funções Públicas, aprovado pela Lei nº 58/2008, de 9 de Setembro, bem como a violação dos deveres especiais previstos no artigo 4º do Decreto-Lei nº 241/2007”.

Ora, perscrutando os referidos deveres gerais e especiais consagrados no regime disciplinar dos bombeiros voluntários e no estatuto disciplinar dos trabalhadores que exercem funções públicas, aplicado subsidiariamente por força do art.º 30º da Portaria nº 703/2008, ou do nº 2 do art.º 37º do Decreto-Lei nº 241/2007, alterado e republicado pelo Decreto-lei nº 249/2012, de 21 de novembro, em parte alguma se encontra norma que estipule o dever dos bombeiros se apresentarem sóbrios ao serviço e nunca sob o efeito do álcool, o que, a acontecer, seria deveras caricato dada a sua evidência. Contudo, a sua inexistência expressa não é sinónimo de não cometer ilícito disciplinar o bombeiro que se apresente embriagado ao serviço, e prova disso é que, na alínea b) do nº 3 do art.º 15º do Regulamento Disciplinar dos Bombeiros Voluntários, está prevista a suspensão de 61 a 180 dias ao bombeiro que compareça ao serviço em “estado de embriaguez ou sob o efeito de estupefacientes ou drogas equiparadas”. Temos a tipificação da norma, com previsão e estatuição, mas faltar-nos-á tão-somente o probatório do ilícito disciplinar através de elementos de prova, obtida pela realização de exames ou testes de despistagem de alcoolemia.

Como referido no ponto 3, a partir do momento em que a CNPD admite a realização de testes de despistagem de alcoolemia, com finalidade preventiva, afigura-se que nada obsta a que se tirem todas as consequências dessa atuação para uma completa preventividade da medida nomeadamente através do uso dos resultados (prova) para efeitos disciplinares. Ora, aqui é que a “coisa” se complica. Caso a realização dos testes não tenha sido legalmente autorizada, a prova daí resultante terá sido obtida por meios ilícitos e, consequentemente, de nenhum valor, não podendo ser considerada !

Importa referir que não existe impedimento legal à existência num corpo de bombeiros de um alcoolímetro de despiste, a que os bombeiros, de livre e espontânea vontade e sem incorrerem em sanção, se auto-sujeitem ao referido controlo.

Esta é fronteira em que nos encontramos.

Contudo, com o devido empenhamento, estou certo que haverá forma de se ultrapassar este impasse. Creio que neste momento, salvo melhor opinião, se perfilam três opções:

  1. Continuar a nada fazer, pura e simplesmente “meter a cabeça na areia como a avestruz”;
  2. Existindo equipamento já adquirido, permitir que este seja utilizado pelos bombeiros para auto-controlo, sem sanções associadas aos resultados, ou;
  3. Prosseguir na esteira da prevenção e da deteção de bombeiros que possam atentar contra a integridade física dos seus colegas, dos utentes dos serviços e dos transeuntes em geral, convictos que, perante a superioridade do bem ou interesse jurídico a salvaguardar (vida) a realização de testes de despistagem da alcoolemia se traduza num estado de necessidade.
As duas primeiras opções manter-nos-ão no campo da estrita legalidade. A primeira porque não haverá qualquer controlo e a segunda porque o controlo será auto-realizado e sem sanção.

Porém, a terceira opção, controversa, a ser seguida, dever-se-á  ter  em consideração os direitos, liberdades e garantias tutelados pela Constituição, e revestir-se da legalidade  possível.






[1] São substâncias que, quando ingeridas, bebidas, injetadas, fumadas ou inaladas, são depressoras, estimulantes ou perturbadoras do sistema nervoso central. O álcool está entre as principais substâncias depressoras.
[2] ACT
[3] CNPD
[4] Lei nº 7/2009, de 12 de Fevereiro
[5] Lei nº 102/2009, de 10 de Setembro
[6] Artigo 19º do Código do Trabalho
[7] Artigos 281º e seguintes do Código do Trabalho, e artigo 15º e seguintes do Regime Jurídico da Segurança e Saúde no Trabalho – RJSST (Lei nº 102/2009, de 10 de Setembro)
[8] Ou instrumento de regulamentação colectiva de trabalho, caso exista
[9] Entidade detentora do Corpo de Bombeiros (art. 281º do Código do Trabalho)
[10] No caso concreto de bombeiros voluntários, caso se venham a reunir condições legais para a realização dos testes
[11] Art.º 97º e 98º/1 do RJSST. Atendendo à improbabilidade das Associações possuírem o seu próprio serviço interno de segurança e saúde no trabalho, poderão estes ser assumidos por entidades externas prestadoras daqueles serviços.
[12] Art.º 15º/10 e 73º do RJSST
[13] Acórdão nº 368/2002/T, Proc. 577/98 do Tribunal Constitucional
[14] As situações de trabalhadores (bombeiros) que conduzam veículos, máquinas ou equipamentos, que pelas actividades ou situações especialmente perigosas em que trabalham
[15] Art.º18º e 19º do RJSST
[16] Art.º108º/1/2, 107º e 103º do RJSST
[17] Consulte-se o Acórdão do TCAN, nº 00003/09.0BCPRT, de 29.04.2010
[18] Art.º2º, 7º e 17º da Lei n.º 67/98, de 16 de Outubro
[19] Consulte-se a deliberação nº 890/2010, de 15 de Novembro, da CNPD, aplicável aos tratamentos de dados pessoais com a finalidade de medicina preventiva e curativa no âmbito dos controlos de substâncias psicoativas efectuados a trabalhadores.
[20] Consulte-se a deliberação nº 840/2010, de 11 de Outubro, da CNPD, sobre o tratamento de dados no âmbito da gestão da informação nos Serviços de Segurança e Saúde no Trabalho.
[21] A análise do Teor de Álcool ingerido através do ar Expirado (TAE) é um elemento de grande importância na política de prevenção contra a condução sob o efeito do álcool.
[22] in “Controlo Metrológico de Alcoolímetros no IPQ, M. Céu Ferreira; António Cruz, Instituto Português da Qualidade”
[23] Portaria nº 902-B.07, de 13 de Agosto.
[24] Quando o teste realizado em analisador qualitativo indicie a presença de álcool no sangue, o examinando é submetido a novo teste, a realizar em analisador quantitativo, devendo, sempre que possível, o intervalo entre os dois testes não ser superior a trinta minutos.
[25] nº 1 do art.º 99º do Código do Trabalho – “O empregador pode elaborar regulamento interno de empresa sobre organização e disciplina do trabalho.”
[26]  nº 2 do art.º 99º do Código do Trabalho
[27] Art.º 349º do Código Civil
[28] Despacho do Presidente da ANPC que regulamenta o modelo de organização de base dos Corpos de Bombeiros.